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REVISTA REAÇÃO :: LIÇÃO DE VIDA :: EU MORRI E APRENDI A VOAR!


Eu morri.

Sim ! Eu morri.

Levei um tiro e cai.


Por que comigo?

Ora, por que não comigo?

Foto do Pensador de Rodin.


Estes dias que antecedem à Páscoa são dias de muita reflexão para mim.

Ouvi recentemente de um padre, @perafaelcasarin, que é necessário morrer para se transformar em algo novo, melhor, capaz de frutificar, para assim, servir. Assim como o grão de trigo que só se torna útil quando morre e permite, com sua morte, que sua essência alcance seu potencial, capaz de alimentar com sua força aqueles que de força carecem.

Com essa provocação eu pude concluir: “morrer é evoluir”. Curiosamente eu carrego comigo a máxima: “evolua ou morra”. Antagonismo? Paradoxo? Jogo de antíteses? Nada disso. Talvez tudo isso.

Há exatos 23 anos, na Semana Santa de 2002, eu morri.

Sim. Eu morri. Levei um tiro e cai. Sobre mim, minha mãe e meu pai choravam. Com os olhos abertos eu nada falava, nada sentia, nada pensava. Para todos os meus, o chão sob nós não mais existia.

Fui levado a três hospitais diferentes pelo fato de meu caso ser muito grave e a transferência ser vital.

Num desses trajetos eu tive um relampejo de consciência. Com os olhos bem abertos pude ver o teto da ambulância que gritava com suas sirenes, que alarmavam a emergência da minha situação. Na minha frente uma mulher uniformizada, que parecia feliz por me ver acordando.

Ora, era óbvio que eu havia sido baleado. A última imagem que eu me lembrava era a de um assaltante com uma arma na mão e, agora, deitado numa maca com aquela bela paramédica sorrindo para mim, era só uma questão de ligar os pontos.

Naquele instante eu sabia que estava paraplégico. Ninguém me disse. Não tentei mexer minhas pernas para constatar que elas não mais me obedeciam. Eu simplesmente soube. Em minha mente veio o cenário de um sonho, ou de uma visão, que tive anos antes, onde eu estava numa praia durante um belo pôr do sol, lendo um livro, sereno, sentado numa cadeira-de-rodas.

Todavia, não era o sentimento de pesar que eu sentia. Eu não me desesperei. Não me descontrolei, nem gritei. Apenas descobri o que era epifania e aproveitei aquela agradável sensação confortante de plenitude.

Sei que não sou digno de que Jesus entre em minha morada, no entanto, fui tocado pela Sua Paz.

Não era alucinação. Eu estava tomado por um infinito sentimento de Paz e Felicidade.

Afinal, qual seria o motivo para tristeza? Nada eu tinha para me arrepender, nem pelas minhas ações, nem pelas oportunidades desperdiçadas. Pensei na vida maravilhosa que eu tinha tido até então. Pensei no amor afetuoso dos meus pais. Pensei no amor carinhoso das minhas irmãs. Pensei nas risadas gostosas e sinceras dos meus amigos fiéis do colégio, da faculdade e dos cursos de pós-graduação. Pensei no crescimento honesto que tive nas empresas em que eu havia trabalhado. Pensei na realização do sonho de estudar e morar fora. Pensei nas viagens de trem pelos Estados Unidos e nas viagens de mochila pela Europa. Pensei na minha integridade. Pensei na minha dedicação em sempre buscar fazer o melhor, onde quer que eu estivesse, mesmo que para isso eu tivesse que colocar uma dose dolorida de sacrifício, é verdade. Mas desses sacrifícios eu não me arrependia, apenas regozijava-me. Senti o carinho e orgulho que meus pais e irmãs jogavam sobre mim.

Por que, então, sofrer? Chorar para que? Eu só tinha o que agradecer.

No terceiro hospital, na Sexta-feira Santa, minha situação era crítica na UTI, e eu inconsciente. A médica disse aos meus pais que eu teria que passar por uma cirurgia para reconstrução do esôfago que, de acordo com as imagens dos exames, havia sido perfurado pela bala. O efeito colateral desse grave ferimento tinha provocado uma infecção generalizada que me fazia queimar em febre. Eu alucinava e convulsionava.

No Hospital das Clínicas em São Paulo havia uma fila de emergência com outros pacientes que precisavam ser operados para sobreviver. Meus pais receberam, então, a notícia que eu seria deixado para ser operado por último, uma vez que eu era o que tinha menos chance de viver. “Vão para casa, pois de nada adianta ficarem aqui. Tentem descansar e fiquem tranquilos. Assim que a cirurgia acabar, eu ligarei para vocês”, falou a médica enviada por Deus. Eles foram, mas seus corações permaneceram. Eles partiram, mas suas orações preencheram o hospital e a alma da santa Doutora. Quem os acompanhou foi o medo, a aflição e a revolta.

A essa altura todos os meus amigos e familiares já sabiam o que tinha acontecido. Eles rezavam. Oravam também desconhecidos, atendendo ao pedido da minha mãe, que pediu para uma vizinha, querida e amada, espalhar a notícia pelo bairro, de modo a ter o maior número de pessoas enviando suas preces a mim. A vizinha, desconsolada, também foi à igreja e pediu para o padre rezar. Assim contaram aos meus pais.

Às 5:00 do Sábado de Aleluia, três dias após eu morrer, o telefone tocou e a médica deu a boa notícia: “A cirurgia foi um sucesso! Não precisamos abrir as costas do seu filho para acessar o esôfago, pois quando abrimos o pescoço, vimos que só havia um arranhão”. Todos se alegraram esperançosos.

Renasci, ainda que mais frágil e mais limitado.

Como explicar a imagem do esôfago perfurado? Talvez tenha sido erro médico na interpretação das imagens. Para a ciência, essa é a explicação. Para mim, quando olho no espelho e vejo a cicatriz em meu pescoço, a conclusão é outra.

Mas a luta contra a morte não terminou ali, com os pontos dados para fechar o meu pescoço. Essa foi só mais uma de tantas outras etapas.

Sem a musculatura do diafragma e com o pulmão afetado, eu não conseguia respirar. Foram doze dias entubado e com as mãos amarradas. Na UTI, durante os breves momentos de lucidez, eu ouvia gritos de dor dos vizinhos nos leitos ao meu redor. Por vezes o ambiente era tomado por um silêncio sombrio, seguido de movimentações diferentes. Alguém partia, e outro chegava em seu lugar. “Quando seria minha hora de partir?” Eu me perguntava.

Abri os olhos e vi uma lindíssima mulher de branco. “Cheguei ao paraíso”, pensei. Seu sorriso angelical contrastava com sua voz imperativa de comando: “Respire, Fabiano. Eu não quero furar sua garganta. Sei que você não quer ser traqueostomizado. Você pode. Você consegue. Respire!”.

Respirei. Vivi.

Oito semanas depois eu recebi alta e fui para casa. Recebi a unção dos enfermos mais uma vez e, desta vez, me revoltei. “Por que comigo”?

Briguei com Jesus.

Eu não queria essa cruz. A morte bastaria. Eu aceitaria morrer com aquela magnífica sensação de Paz e Felicidade. Mais do que isso, teria sido maravilhoso morrer com aquele sentimento de plenitude.

“Afaste de mim esse cálice. Eu não quero essa cadeira. Por que me abandonastes? Por que não me deixaste ficar perto de Ti”?

Gritei. Berrei. Chorei. Gritei. Gritei mais.

Magoei meus pais, minhas irmãs e meu cunhado. Fiz todos chorarem. Xinguei Jesus e também o padre que foi me visitar.

“Pode se revoltar, Fabiano. Nada mais justo do que isso. Pode xingar. Revolte-se. Chore. Xingue. Sua revolta com Ele mostra sua crença Nele. Você ainda não sabe, mas quando for a hora, você descobrirá o que Ele te reserva”.

Continuaram rezando por mim meus familiares, amigos e pais dos meus amigos. Rezou também o padre que ataquei com palavras revoltosas. Estes eu conhecia e sabia que estavam orando incessantemente para que eu melhorasse. Ademais, tantos outros desconhecidos continuaram a rezar. Muitos que eu não conhecia e nunca conhecerei. Sem embargo, suas orações ajudaram.

É fácil rezar para quem se ama, mas para um desconhecido, talvez não. Contudo, os resultados destas orações tiveram a mesma força, senão ainda maior.

Desconhecidos? Desconhecidos! Mistérios de Deus!

Assim como é um mistério uma desconhecida vendedora de ovos estar na obra de Claudio Pastro, num dos maiores santuários da igreja católica no mundo, a Catedral de Nossa Senhora Aparecida. Uma personagem anônima, eternizada numa obra capaz de sensibilizar a alma de quem a contempla. É bem provável que alguns dos que a contemplaram tenham comido seus ovos, mas nem se importaram em saber seu nome. Muitos viram a obra. Poucos sabem, ou saberão, da história, do mistério.

Sorte dos que sabem contemplar. Sensibilizados pela arte, eles podem até sentir o mistério, mas jamais conhecerão, pelo menos nesta vida, o real motivo que a levou a estar ali, firme, bela, plena, eterna.

O que isso importa? Não sei. Sei que contemplar é bom. Valorizar é grande. Agradecer é divino. Perdoo, e agradeço, quem me derrubou. Ele não sabia o que fazia e, em verdade, foi apenas um instrumento da Tua obra, cheia de mistérios.

Aprendi a contemplar. O que mais eu podia fazer se meu corpo não mais podia?

Fiz as pazes com Ele. “Por que comigo? Ora, por que não comigo?” Eu entendi.

Aprendi a orar, até porque minha alma limitada precisava, mais do que nunca, de alimento. Eu precisava de força para carregar essa cruz, minha cadeira.

A haste vertical da Cruz de Cristo indicava o Seu Destino. A haste horizontal serviu para pregar Suas mãos, mas de Braços abertos para nós.

Minha cruz não é uma cruz. Bem ao contrário, é ela que me carrega, e não eu a ela. Obrigado por esse Cálice, Senhor. Te agradeço por não ter imobilizado minhas mãos e, assim, permitir que eu possa impulsionar minha cadeira. Com ela eu posso voar, não às alturas como Ti, ou como aqueles que Tu chamas para Vida Eterna, mas com ela eu posso correr pela Tua criação, este planeta perfeito que criastes e nos dera de presente. Obrigado por este presente, belo, perfeito, esplendoroso.

Deus, obrigado por me matar, por me fazer padecer, por querer e permitir que eu renascesse.

Hoje vejo quantas bençãos recebi após minha lesão medular. Fiz novos amigos e aprendi a valorizar ainda mais os velhos. Superei-me atuando num musical para mais de duas mil pessoas. Cresci profissionalmente. Conheci a mulher maravilhosa que me deu o meu filho amado. Separei-me. Realizei meu sonho de moradia. Fui presenteado com a mulher da minha vida, mulher extraordinária que é como um sonho bom para mim, ou melhor, que é mais do que um sonho, um sonho que eu jamais ousaria sonhar, nem nos melhores dos sonhos! Mulher que desperta o que há de melhor em mim, que me faz querer ser melhor e querer fazer o melhor para ela, a cada dia. Mulher que me fez descobrir o amor ágape, o Teu Amor, e faz eu me sentir mais perto de Ti.

“Sou de fato merecedor de tantas graças? Imagino humildemente que sim, pois o Senhor, em sua infinita bondade misericordiosa, as me concedeste. E por isso serei eternamente grato, no entanto, sinto-me em dívida com o Ti e não sei o que fazer para recompensá-lo. Por favor, me tire esta dúvida que tanto me consome”, eu pensava aflito.

Nasci, cresci, morri, renasci, multipliquei, amo. Com efeito, continuo, por vezes, sentindo-me como a caneta que não funciona quando se precisa dela. Inútil.

“O que Deus espera de mim? O que Ele me reserva?” Eu pensava, perdido.

Tenho me esforçado na tentativa de descobrir. Falhei buscando a resposta no exterior. Foi no meu interior que encontrei algo que tem me dado prazer e que, talvez, acredito, possa ser uma semente que venha a dar frutos na morada de outrem e, consequentemente, na minha.

Tenho escrito. Não com uma Mont Blanc que não funciona. Graças a Deus, como um dos milagres que vi e vejo todos os dias, a tinta da minha alma não secou, mas vejo cada vez mais luminosa, carregada com o brilho do céu.

Quem sabe cada palavra que minh’alma escreve seja uma semente ávida por morrer, renascer, florescer e frutificar, num ciclo virtuoso e infinito.

Morra e Evolua. Evolua ou Morra. Antagonismo? Paradoxo? Jogo de antíteses? Tudo isso, mas nada disso. Um Milagre. O Milagre virtuoso da vida.

Quem sabe cada uma dessas sementes que tenho para semear não seja filha da fruta que surgiu com o meu renascimento? Um Milagre? Mais um Milagre. Aprendi a enxergá-los. Aprendi a gestá-los. Aprendi a contemplá-los. Aprendi a valorizá-los. Aprendi a agradecê-los.

Milagres, para mortais, precisam ser gestados. Quem não morre e não renasce em Ti, não vê milagres. Não acredita neles. Como enxergar a beleza infinita do universo sem perceber os milagres de Deus nas pequenas coisas que nos rodeiam?

Feliz Páscoa!

Trecho extraído do volume um da obra 2081 - XRAM :: O Livro do Renascimento.



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